domingo, 18 de novembro de 2012

Vivemos o período extra-moral

No capítulo 32 do livro Além do bem e do mal de Friedrich Nietzsche, o filósofo classifica o período em que vivia como "Período Moral". Segue o trecho:

"Durante o mais longo período da história humana - chama-se pré-história - julgava-se o valor e o não-valor de um ato segundo suas consequências (...) O Efeito retroativo do sucesso ou insucesso impelia os homens a pensar bem ou mal de uma ação. Chamemos esse período o período pré-moral da humanidade. (...) Mas, durante os últimos dez mil anos, chegou-se pouco a pouco, em grandes regiões do globo, a não considerar mais as consequências de um ato como decisivas do ponto de vista do valor desse ato, mas somente sua origem (...) efeito inconsciente do reino dos valores aristocráticos e da crença na 'origem', sinal de um período que pode ser denominado, no sentido mais estrito, o período moral."

É a fase da humanidade em que as intenções são mais importantes que as consequências de um ato. m exemplo em que essa definição se faz compreender facilmente é na manchete desse jornal (clique aqui), "Joaquim Barbosa: negro, popular e agora presidente do Supremo". Não fosse pela ditadura da moral, o redator teria se contentado com "Joaquim Barbosa: novo presidente do Supremo" e, ao longo da notícia, traria todo o histórico da participação de Joaquim Barbosa na política e no judiciário de forma a trazer o enfoque para as consequências do juiz ter se tornado o novo presidente do STF.

Não é o que acontece na sociedade em que vivemos, em que o valor dos atos é julgado segundo sua origem. Assim, o enfoque do jornalista está em contar o drama da vida de Joaquim Barbosa, as dificuldades pela qual passou antes de chegar a juiz. "É sob o império desse preconceito que se começou a elogiar e a recriminar, a julgar e também filosofar do ponto de vista da moral", como explica Nietzsche. Então, ao invés de se ouvir nas ruas "Ele será um bom juiz, defendeu causas justas no judiciário", ouve-se "Ele merce o cargo, é um batalhador".

A ditadura da moral é tão acentuada hoje em dia que não nos contentamos apenas em elogiar; fazemos filmes como "Lula, filho do Brasil", que mostra toda a história de vida do ex-presidente, "À Procura da Felicidade", com tema semelhante.

E Nietzsche é um filósofo tão genial que ele previa essa acentuação já em 1886. "Não estaríamos à soleira de um período que se deveria denominar, num primeiro tempo, negativamente período extra-moral?". Não é a toa que Friedrich Nietzsche é considerado um filósofo do pós-modernismo, tendo publicado seus livros e morrido antes de se iniciar o modernismo.

Nós vivemos o Período Extra-moral, consideramos mais as intenções do que as consequências. E - perceba agora o caráter imoral do texto - que consequências isso traz para nós? Na América Latina inteira, temos como exemplo a eleição de tantos políticos populistas, com que o brasileiro médio mais se identifica pela história de vida, em parte também as cotas raciais e sociais... Vivesse hoje, Nietzsche provavelmente definiria todos esses impactos como prejudiciais.

Mas cego é aquele que crê em todos os mandamentos de um só deus. Nietzsche era um gênio, sem dúvida, mas é impossível estar certo em tudo. A razão não tem um só dono, é algo de que todos compartilham em diferentes proporções. Durante a leitura, anotei inclusive trechos em que Nietzsche se contradizia. Eu poderia citar aqui o capítulo 25, em que o filósofo pede a todos que não defendam de forma inconsequente a verdade, ou seja, não se arrisque a defender um ideia se essa busca levar à sua própria morte. No entanto, no capítulo 12, exalta Nicolau Copérnico como "o mais vitorioso adversário da aparência". De fato, Copérnico é admirável, mas, nessa sua luta contra a aparência, lutou também contra um adversário que poderia tê-lo levado à morte, a Igreja. Não fora Copérnico de todo inconsequente? Não deveria, então ter sido vítima da admiração de Nietzsche.

Nietzsche estava certo de que chegaríamos ao período extra-moral - chegamos; mas não seria esse fato benéfico à sociedade do século XXI? Na verdade, "À Procura da Felicidade" - que eu defendi anteriormente como sendo inteiramente baseado na moral - é meu filme favorito.

É que atualmente nós extrapolamos na supervalorização da moral. Mas a moral que imperava no século XIX, de Nietzsche, não é a mesma do século XXI. A moral de hoje é o oposto da antiga. O filósofo deixa, inclusive, o caráter depreciativo da moral de seu tempo muito evidente no trecho em que a define como "efeito inconsequente do reino dos valores aristocráticos e da crença na 'origem'".

A moral que predominava no XIX prejudicava, de certa forma, a busca pela igualdade. Servia-se do mesmo princípio de todas as morais, que Nietzsche muito bem caracteriza, mas privilegiava poucos. Era a moral burguesa, descrita por Erich Hobsbawm.

A moral burguesa tornava o burguês idealizado. Estabelecia que o objetivo de todos era ser burguês, mas só conseguia aquele que era capaz, quem era realmente merecedor. A uma primeira vista, o leitor poderia se enganar, comparando essa moral com esta que rege a sociedade atual. Todavia, deve-se juntar os princípios dessa moral ao fato de a religião dos burgueses do século XIX ter sido o Calvinismo, que prega, de certa forma, que só alcança o paraíso quem já nasce com riqueza material. Ou seja, ser burguês era até então um estado natural. O proletário não se tornava burguês.

Hoje a sociedade está menos estamental. Há pessoas que nascem miseráveis e, por esforço pessoal, adquirem o poder aquisitivo. Nossa moral privilegia essas pessoas e nós os definimos como merecedores do sucesso. É o caso de Joaquim Barbosa, Lula, Silvio Santos - inúmeras exceções.

A moral de hoje é justa. É importante que se dissemine que há exceções ao cruel fato de um ter que conviver para sempre com a miséria. É uma forma de lutar contra os preconceitos construídos pela moral aristocrática que tanto prevaleceu e, certamente, ainda tem resquícios no século XXI.

Estamos chegando ao ponto máximo da moralidade. Vivemos o período extra-moral. Mas as construções morais desse novo tempo estão sendo usadas para desconstruir a moral preconceituosa que prevaleceu nos dez mil anos que estão atrás. E, quem sabe?, um dia quando não houver mais preconceitos, não seja preciso lutar contra eles. Reinará, finalmente, a paz, igualdade e liberdade. Será o Período Pós-Moral.

Nenhum comentário:

Postar um comentário